10 julho, 2011

Conversar


Perdeu-se no meio de uma conversa trivial durante um almoço. As frases começaram a escapar-lhe, primeiro os verbos, depois os adjectivos, aos poucos deixaram de fazer sentido. Seria sobre o trabalho? Ou os saldos das lojas? Ou como a temperatura oscilava indefinida? Perdeu-se e já não se encontrava ali. Os pensamentos voavam-lhe para longe, apenas o corpo permanecia no ritual habitual.
“Pssstt…” - Um rapaz de cabelo despenteado e óculos rectangulares de massa, de onde sobressaiam uns olhos azuis, chamava-na da mesa ao lado. Estava sozinho e pousava ao lado dele um caderno de capa preta, olhava-a como se a conhecesse de algum lugar. Ela reagiu com a estranheza do desconhecido e, ao mesmo tempo, o desejo incontrolável de lhe responder. Perguntou-lhe com o olhar, acompanhado com um ligeiro gesto em direcção ao seu peito soletrando com os lábios “Conheces-me?”. Na mesa ao lado, ele abanou a cabeça enquanto mexia o café, respondendo com a mesma mudez “Isso importa?”. 
Nesse momento ela sentiu-se ainda mais intrigada, a conversa na sua mesa eram palavras soltas que já não ouvia, nem lhe interessavam. Queria ouvir as palavras provenientes da boca daquele estranho que a invadia em silêncio, como se a conhecesse, sentia-se ávida conversar com ele, sem perceber porquê aquela mímica seduziu-a. Fugiu com os olhos por segundos que lhe pareceram eternos até lhe devolver novamente um olhar de esguelha. Só mais um olhar, pensou, que mal tem?
Ele continuava a olha-la sorrindo e os seus lábios moviam-se onde ela lia “queres conversar?”.
“Conversar”, pensou. Ele queria conversar com ela, era a história mais absurda de engate que ela se lembrava. Ainda assim, de sorriso trocista, devolveu-lhe silenciosamente “Sobre o quê?”. Ele respondeu da mesma forma, bem devagar para que ela acompanhasse o que os seus lábios proferiam “sobre sensações, o que sentimos”.
Um estranho numa mesa ao lado, perturbava-lhe a atenção. Deu conta que, de repente, conversava mais com ele do com as amigas na sua mesa, alheias a toda a confusão. Reparou que ansiava conversar com ele sem sequer saber o seu nome, ter ouvido a sua voz. No limite poderiam continuar a trocar diálogos mudos, num código gestual que apenas ambos compreendiam.
Levantou-se determinada, deixou a sua mesa com a desculpa “vou ter com um amigo” e sentou-se na mesa ao lado, à frente dele. No mesmo silêncio, ele estendeu-lhe o livro de capa preta abrindo numa determinada página. Um contorno de um rosto, parecia o seu, mas com os olhos raiados, demasiado raiados, como se estilhaçados em vários pedaços de vidro. Perguntou-lhe, ainda numa voz sumida “São os meus olhos? Porque estão assim?”. A voz dele saiu num volume normal, fazendo-a sentir-se ridícula com o seu sussurro. Uma voz estranhamente agradável, até mesmo familiar “Diz-me tu, porque os teus olhos espelham estilhaços de insatisfação”.
E foi então que começaram a conversar. As palavras jorraram sobre o que cada um sentia da vida, as angústias e incertezas, os medos, as dúvidas.
Não sabe por quanto tempo ficaram ali a conversar, até que a tarde fez-se noite e despediram-se.
Lembrou-se depois que não ficou com o seu contacto, não sabia sequer o seu nome, nem o que fazia. Talvez nunca mais o visse. Ainda assim, conversar com ele foi o melhor do seu dia.

2 comentários:

Tiago disse...

'Reparou que ansiava conversar com ele sem sequer saber o seu nome, ter ouvido a sua voz.'(, ou simplesmente sem se conhecerem.) Ás vezes é assim, procuramos 'abrigo' no desconhecido... Gostei Muito =)

sgar disse...

ou apenas... procuramos abrigo onde o encontramos :)