«Como esquecer?
Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se
esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando
alguém se vai embora de repente como é que faz para ficar? (…) As pessoas têm
de morrer, os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de
ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar. Sim, mas como se faz? Como
se esquece?
Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta
esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. (...) É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso
aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É
preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém
aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou de coração. Ninguém aguenta
estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos.
Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar
entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de termina de lembra-lo. A
saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doida, devidamente
honrada. É uma dor que é preciso, primeiro, aceitar.
É preciso aceitar esta magoa esta moínha, que nos despedaça
o coração e que nos moí mesmo e que nos da cabo do juízo. É preciso aceitar o
amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de
justiça, a falta de solução.
Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para
trabalhar mais, para distrair a vista, para nos distrairmos mais, mas quanto
mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa
espera acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado.
O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento,
conseguidos com grande custo, com comprimidos, amigos, livros e copos, pagam-se
depois em conduídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr
o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar. (…)
Para esquecer uma pessoa não há vias rápidas, não há
suplentes, não há calmantes, ilhas nas Caraíbas, livros de poesia. Só há
lembrança, dor e lentidão, com uns breves intervalos pelo meio para retomar o
fôlego. (…)
Quando já é tarde para voltar atrás, percebe-se que há
esquecimentos tão caros que nunca se podem pagar. Como é que se pode esquecer o
que só se consegue lembrar!
Aí, está o sofrimento maior de todos. Aí está a maior das
felicidades.»
Miguel Esteves Cardoso, in “Último Volume”
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