11 agosto, 2011

Ensaio sobre a Alma




Cada segundo em que estou acordada, em qualquer momento do meu estado consciente, procuro por ela.
Não é propriamente algo que se pode esconder numa gaveta fechada, por baixo de um colchão antigo ou em alguma caixa velha arrumada no fundo de um armário.

Na verdade ela é imprevisível, incorrigível e vadia. Esgueira-se por uma nesga da porta ou pela fresta da janela e corre rápido, mais do que os pés humanos possam correr para a alcançar.
Podia procura-la nas montanhas mais altas, nas florestas mais densas, nos lugares mais perigosos e longínquos, que não a iria encontrar. Porque a sua natureza é rebelde, fugidia e não se deixa capturar. Nem por mim, o seu próprio corpo, que lhe deu origem e a fez crescer, também aquele que a perdeu ou letargicamente a deixou partir.

Exausta de uma busca inglória, do vazio constante por preencher dentro de mim, não tive alternativa senão lançar-me na boca do lobo para a reaver.

Chamavam-lhe “Coleccionador de Almas” e reza a lenda que já conquistou as Almas das mais belas criaturas humanas e até divinas. Diz-se que algumas das Almas por ele conquistadas ficaram para sempre com ele, outras ele entregou-as ao seu destino.
Quando o vi naquela noite achei-o estranhamente familiar. Apesar de já ter ouvido falar dele, não lhe conhecia o rosto. E ainda não o conheço na totalidade, pois ele esconde-o por detrás de uma máscara que lhe tapa os olhos e o nariz, deixando apenas a boca a descoberto. Uns lábios grossos, carnudos, mas pouco expressivos. “Talvez seja para proteger a sua própria alma, assim como escudo” pensei enquanto me aproximava devagarinho. Um espanta-espíritos abanava ao ritmo do vento que entrava por uma pequena janela, o aroma de incenso queimado inundava aquele cubículo escuro iluminado por velas. Ele estava sentado no chão e olhava na minha direcção, um olhar que eu não via, apenas sentia.
- Roubaram-te a Alma – disse numa voz grave e calma.
Limitei-me a acenar e, pela primeira vez, escancarei-me com uma hipótese plausível para ela não regressar. Talvez assim como havia um Coleccionador de Almas, houvesse também um Ladrão de Almas, um Traficante de Almas, e por aí em diante. Um mundo horrendo de criminalidade por desvendar.
De repente um frio desconfortável percorreu-me o corpo “e se a minha Alma tivesse sido vendida? Oferecida a alguém que a espavoneie como sua, sim, se ela agora pertencesse a outra pessoa?”. Seria possível alguém, para além do Coleccionador de Almas, um feiticeiro louco, ter mais do que uma alma? E o que faria com ela então? Estaria a minha aprisionada, doente, despedaçada? O sofrimento assombrava o meu rosto quando ele interrompeu os meus pensamentos.
- Mas ela está feliz, mesmo que apartada do seu corpo.
Feliz. Agora ele referia aquela palavrinha fantástica, que supostamente diz tudo e, na boa verdade, não diz nada.
- Feliz como? – Perguntei já irritada, imaginando um corpo aos pulos de alegria com a minha Alma ao colo, a correr com ela pela praia, sentados num pontão a pescar…
- Feliz, quero dizer, completa – esclareceu – E agora só tem duas hipóteses: ou a deixa viver feliz como está mas longe do seu corpo, ou eu posso capturá-la e traze-la de volta para a aprisionar ao seu corpo, aquele que lhe deu origem.
- Mas isso é uma escolha? – Semicerrava agora os olhos incrédula – Ficar com o meu corpo vazio de Alma ou ter a minha Alma aprisionada e infeliz.
- Garantidamente não é uma escolha fácil, mas as grandes escolhas são sempre assim…Difíceis – tamborilava agora os dedos no chão de madeira – Com a primeira hipótese dá-lhe a liberdade de ser feliz e poderá sempre voltar se essa felicidade acabar.

Arrastei o meu corpo vazio, ainda mais vazio agora esburacado por uma súbita tristeza, para fora do cubículo escuro. A noite, de repente, pareceu-me mais clara do que o normal, ou seriam as estrelas mais brilhantes, ou a lua cheia lá no alto. Tudo era definitivamente mais claro cá fora.

Respirei fundo, como para aceitar conscientemente a decisão tomada.
Acreditava que qualquer Alma devia ser livre, ainda que para isso implicasse distanciar-se do seu próprio corpo. De alguma forma fazia sentido a busca pela tão proclamada felicidade, e se ela estava noutro lugar, que assim fosse. Estaria ela a dormir espreguiçada no ombro quente de alguém que a amasse? Consolada na sua respiração, abrigada rente ao seu sorriso? A ideia agradava-me, por isso continuei a caminhar confiante, indiferente ao meu corpo abandonado e vazio. 
Sabia agora que, a qualquer hora, ela podia voltar, ou quem sabe, até mesmo outra Alma podia conquistar o meu corpo, sem qualquer compromisso.

2 comentários:

viajanteintemporal disse...

Fabuloso!
Coleccionador de Almas?
Será que me roubou a minha?
beijinhos

sgar disse...

Viajante, é possível ... podemos lá ir perguntar-lhe! Beijinhos