03 novembro, 2015

Bolha



- Posso andar assim por um tempo?
Sem a pressa da vida empurrar-me o corpo e, num turbilhão, arrasta-lo pelas bermas do passeio. Sem o medo constante de errar, a angústia da escolha, a pressão sufocante de decidir. Sem as dúvidas a rasgarem a pele, as perguntas vãs a queimarem tudo por dentro.
- Posso andar assim?
Sem me notarem. Invisível, transparente.
Até que o anoitecer devolva a sombra da paz, o néctar dormente dos deuses.
- Só por um pouco.
Libertar os passos do calendário do tempo, da voz ritmada dos dias, e permitir-me a uma melodia suave, num embalar íntimo, só meu.
Olho à volta e vejo metade da minha vida, a passar por mim, numa locomotiva a vapor. Um fumo imenso em redor, ofusca a visão de tonturas, ansiedade e medo. É assim a vida num carris apertado de ferro baço, com o percurso delineado, minutos contados para chegar a lugar nenhum. Percebo agora, que não levo nada. Estou sozinha e despida de quem fui, de tudo que tive, e de quem sou.
Não me venham falar do mundo à volta, lá fora. Conheço-o bem demais para saber que agora, neste momento, preciso ficar assim. Na minha bolha. Por um tempo.




30 outubro, 2015

Berma



Digo para mim que é mesmo assim. Um passo de cada vez, devagar.Sem olhar para trás, ou para baixo.Seguir em frente,  por instinto, sem hesitar. Mesmo de olhos cerrados pelo medo, sangrando ansiedade entre as escarpas do desconhecido. Porque só aos audazes é permitida a paixão de estar vivo. Essa inebriante loucura de viver  um pouco mais além dos seus passos.
Digo que o que deslumbra traz quase sempre consigo a vertigem do salto. E para voar é preciso abandonar o corpo pesado, libertar a alma.
Como caminhar na berma do precipício. Ninguém disse que seria fácil.
Amar assusta. Por vezes mata.

20 outubro, 2015

É por ali



«É por ali» diziam-lhe.
Mas os pés tremiam invariavelmente na bifurcação.
Perdida de medo,  mergulhada em dúvidas, hesitações.
Sempre que escolheu amar, o amor não a escolheu.
Como se a linha do destino estivesse traçada e, lá no fundo, à sua espera, sempre o vazio, imenso. Um abismo voraz,  infinito - a escolha do coração.
Essa bússola errante, cega, demolidora. Arrasta para os caminhos mais distantes da razão. Lugares selvagens, paraísos sonhados, castelos erguidos no céu de algodão.
Só porque escolheu amar, não foi por ali.
Fechou os olhos, apertou os braços contra o peito, chorou e caminhou .
Mas o amor não a escolheu, esse amor, tão frágil, tão raro, nunca chegou.

16 outubro, 2015

Príncipe


«Príncipe
Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me.»

Ana Hatherly, in "Um calculador de Improbabilidades"

Caminhos



«Era uma vez uma pessoa que procurava a sabedoria. Tinham-lhe dito que para a atingir tinha sempre que aceitar e recusar ao mesmo tempo tudo o que lhe fosse oferecido, dito ou mostrado. Quando perguntava por onde era o melhor caminho e lhe diziam “é por ali” ela devia seguir imediatamente nesse sentido e depois no sentido contrário. Tendo assim percorrido todas as direcções indicadas e as não indicadas, sem mais caminhos a percorrer, sentou-se no chão e começou a chorar. Sem saber, tinha chegado.»

Ana Hatherly, in «463 Tisanas», 2006.