28 julho, 2011

O que vale um Beijo

- O que vale um beijo?
Perguntou um ser ignorante ao maior sábio do mundo. E o sábio ficou abalado, confuso, as suas mãos tremiam…
Disse-lhe a definição de beijo, todos os tipos de beijos catalogados, todos os sabores e feitios. Explicou-lhe os efeitos que provoca, o aumento das pulsações cardíacas de 60 para 130 por minuto, que queima 15 calorias, os 30 músculos faciais que activa. Explicou-lhe tudo. Ou quase tudo. Mas não lhe deu a resposta que ele pedia:
- O que vale um beijo?
Intrigado, o sábio procurou em todas as enciclopédias do mundo, nas várias línguas, nos antepassados manuscritos… levou anos de pesquisa, até que respondeu humildemente ao ignorante que não sabia.
Então o ignorante sentou-se junto dele e contou-lhe a sua história.
Um dia beijou uma mulher que se cruzou com ele na esquina. Nem reparou bem no seu corpo ou rosto, os olhos chocaram de frente, foi atraído pela sua respiração e invadido pelo seu perfume. Assim, inesperadamente, chocaram um no outro e ele e sentiu uma vontade louca, violenta, poderosa, de lhe segurar a cintura e a beijar naquele mesmo instante. Apenas isso lhe passou a voar, por segundos, na cabeça.
Como era uma pessoa sem grande capacidade de raciocínio, deixou-se levar pelo instinto. Agarrou-a com a mão esquerda contra o seu tronco e com a outra mão afagou-lhe o cabelo, beijando-a de seguida.
O sábio olhava-o espantado, sem conseguir perceber uma palavra do que ele lhe dizia. Ainda assim perguntou curioso «E depois?».
O ignorante disse-lhe que foi um beijo demorado, doce, molhado. Sentiu-lhe todo o corpo, e entregou o dele também, numa nudez guiada pelos lábios e a língua. «Sim, sim, mas e depois?» repetia o sábio já irritado.
- Depois, sorrimos e cada um seguiu o seu caminho.
O sábio ficou perplexo, agitado, perguntou-lhe se não tinha ficado com o contacto dela, se não a tinha seguido. E afinal, repetia o sábio, o que lhe valeu aquele beijo?
O ignorante encolheu os ombros. Era mesmo isso que ele não sabia.

Cargas e Descargas



Descarrego então aqui o meu corpo exausto e a cabeça em maresia.
Hoje não me apetece levar nada para casa. Apenas abandonar-me ao relento, ouvir música e ler poesia. Adormecer com a lua por cima e as ondas a conversarem baixinho, cantam-me ao ouvido.
As estrelas, lá bem no alto, vão fazendo comigo jogos de ilusionismo, mágicas, misteriosas, procuro nelas um caminho.
Não encontro. Ainda não, hoje. Mas não desisto de descarregar aqui de vez em quando.
Talvez o camião do destino me carregue, e leve para algum lugar, um dia.

26 julho, 2011

Palavras que brincam


Há palavras que brincam connosco no escuro. Seduzem-nos na ilusão de que são muito mais do que isso - meras palavras escritas a azul num pedaço de papel. Envolvem-nos e sugam-nos. Alimentam-nos o espírito.
Há palavras mágicas, carentes, que nos despem a alma. Aparecem de repente, assim do recanto mais inesperado do mundo e, sem darmos conta, preenchem um vazio que nem tínhamos notado existir. Um buraco profundo.
Palavras intensas que nos amparam num momento confuso, pegam-nos ao colo e sussurram fantasias ao ouvido. Por vezes inquietam-nos, ou comovem. E quase esquecemos que são letras que se juntam em frases premeditadas, beijam-nos a face, os lábios, percorrem-nos sem sentido.
São palavras, que bebemos sequiosos de que se transformem em muito mais, que tomem forma, acção, que se concretizem. Para depois vermos que não existe mais nada, voaram ao acaso para o nosso lado, dormiram na nossa almofada, partilharam o nosso corpo estilhaçado, abraçaram-nos e numa espécie de concha formaram um abrigo.
Há palavras que brincam connosco no escuro. Escondem-se e depois aparecem de repente a meio da noite. Assustam-nos quando se apoderam de nós a cada minuto do dia. Sentimos medo, pânico, de nos apaixonarmos por elas como por um verdadeiro desconhecido.
Palavras, repetimos resignados, são apenas palavras que amamos. Mas seria tão bom que fossem muito mais do que isso.

Amanhã


Hoje partiu uma pessoa querida. Partiu assim sem avisar, sem se despedir. Partiu deste mundo, para outra vida. Um vida só dele, distante. Nós vamos ficando por cá, contorcidos por dentro, a chorar.
Ficamos naquela redoma gigante, absortos pela ignorância da nossa curta existência, que somos finitos, que a vida corre rápido e amanhã o coração pode deixar de bater, podemos já não respirar.
Morremos a cada dia que pensamos "amanhã é outro dia", e adiamos um sonho por cumprir, cada desejo por realizar.Morremos, lentamente, sem percebermos, sempre que não dizemos as palavras que nos atravessam a garganta e sufocam a alma inquieta, sempre que não vivemos, não arriscamos.
Ao adiar morremos, sempre, sem notar. Numa negligência absurda de sentidos e emoções. De tudo quando deixamos por satisfazer, por conhecer ou por terminar.
Abraços, conversas, beijos, gargalhadas, até pormenores insignificantes mas para nós importantes, um olhar meigo, uma palavra certa, fogem-nos  num comodismo ambulante, o estigma que somos eternos e que tudo pode sempre ficar para depois...
Amanhã é outro dia, sem dúvida. Mas pode já não ser o nosso dia.
Hoje é tudo o que temos, para viver intensamente, fazer o impossível, derrubar paredes, vencer o protocolar. Entregarmos-nos sem medo, de peito aberto, virgem de receios, dúvidas e hesitações. Livre de anseios.
Amanhã? Do amanhã nada sabemos. Podemos ficar sentados à espera. Poderá ser tarde demais.

25 julho, 2011

Do rés-do-chão ao 7º piso


Voltou atrás. Voltou porque se esqueceu da carteira em casa. Estava atrasado, estacionou apressado na garagem, como sempre fazia. Entrou no elevador, marcou o 8º para logo a seguir parar no rés-do-chão. Resmungou um som inaudível, numa expressão facial irritada que não pôde evitar. A porta abriu-se e a expressão dele mudou quando ela entrou.

De óculos escuros e lábios carnudos vermelhos, ela proferiu um «Bom dia»na sua voz enigmática. Embaraçado, perguntou-lhe o andar. Perguntou por perguntar, porque ele já sabia. «7º» respondeu-lhe, deslizando os óculos pelo cabelo. Fixaram-no nesse momento, os olhos castanhos-claros, delineados com um traço preto fino e pestanas alongadas. De tal forma penetraram-no que, por segundos, não teve reacção. «7º» voltou a repetir, ele estremeceu de repente e carregou no botão.

O elevador subiu e com ele o perfume doce que ela emanava. A um metro de distância, frente a frente, fugiram com o olhar inseguro. Ela para o espelho que acompanhava a parede do elevador, ele para o soalho escuro. Preparava-se para dizer algo protocolar, talvez falar do tempo ou de uma notícia do dia, quando um solavanco arrebatou o seu corpo para a frente num embate imprevisto. Os óculos dela caíram para o chão e ambos baixaram-se instintivamente. Baixaram-se e inevitavelmente as suas respirações rasparam-se, sentiram-se, misturaram-se. Um ar quente que enlouquecia, um perfume que libertava fantasia. Voltaram a subir, os corpos, e perceberam que estavam parados. No espaço, no tempo, nos segundos de um dia, o elevador não subia nem descia.

Carregaram nos botões todos, para descer, para subir, no alarme, mas nada dava sinal de vida, não se ouvia qualquer campainha. Também o telemóvel não tinha rede, nada funcionava, numa completa letargia. Estavam fechados, presos, num cubículo isolado do mundo, como se morressem e renascessem um no outro por magia.

Ela pousou a mala no chão encolhendo os ombros. «Estamos presos» disse-lhe despindo o casaco bege, deixando a descoberto os ombros finos. Ele percorria-lhe os gestos estranhamente agitado. O vestido de um tecido acetinado em tons rosa pálido, delineava-lhe o corpo perfeito «demasiado perfeito» pensava enquanto a percorria, parando no decote, com alguns botões por abotoar, mostrava atrevidamente o peito saliente, onde ele se perdeu a olhar.

«Sim, parece que estamos» respondeu-lhe ainda rouco.
As suas mãos transpiravam e o ar tornou-se de repente quente, um ardor que não sabia bem de onde vinha. Atirou também para o chão o casaco do fato, abriu o nó da gravata e desapertou o colarinho. E naquele instante demente, viu através do espelho as costas dela, o decote em V pronunciado mostrava aquilo que ela não trazia vestido. O sangue disparou a bombear-lhe o peito acelerado, enquanto ela olhava-o inocentemente, talvez mesmo impaciente. Nunca o tinha olhado daquela forma furtiva, de cima a baixo, como se esperasse algo mais do que dizia. «Então…esperamos?» perguntou na sua voz acetinada, e o tom sensual levou-o novamente para o seu vestido, por cima do joelho, de onde saiam as pernas longas e esguias, que terminavam num salto alto fino.

«Agora… não sei…» respondeu-lhe com a garganta seca e com a ânsia súbita de a possuir naquele mesmo instante. Matar ali aquela sede que o sufocava simultaneamente de desejo e agonia.

O espaço tornava-se cada vez mais apertado, ou eram os corpos que se aproximavam inconscientes. Os olhos não se descolavam, fundiam-se as retinas, numa amálgama desfocada de sentido. Perderam-se as vozes, perdeu-se o controlo, num assalto a que ambos se permitiram. Ele segurou-lhe o pescoço por baixo dos cabelos longos ondulados, ela puxou-lhe para cima a camisa. As unhas percorreram-lhe suavemente as costas suadas e o pudor era agora o seu inimigo vencido. As bocas já respiravam ofegantes, entregaram-se sequiosas as línguas. Os corpos ondulavam suados contra a parede, um contra o outro, de tal forma ritmada como se ele já a possuísse por entre a roupa, sentia-lhe o peito arrepiado por debaixo do vestido, saboreava-lhe na pele o perfume. Deslizou a mão pela perna, contornando a coxa e subindo o vestido até à cintura. Ela desapertava-lhe o cinto, enquanto recostava o pescoço para que ele a percorresse, com os lábios, faminto.

Num solavanco o mundo parou de girar e perceberam que o elevador começou a andar. E nesse instante sentiram o verdadeiro perigo. Primeiro desceram até à garagem sem parar, depois foi novamente subindo. Os dois corpos atirados para trás violentamente, compuseram as roupas amarrotadas, atordoados com o sucedido. O salvamento era agora, por ironia, um castigo. Inevitável e cruel, como o destino dos dois.

Parou no 7º piso e ela não olhou para trás, apenas tocou-lhe ao de leve com a mão, onde uma aliança barrava-lhe o caminho. Ele segurou-a por segundos dolorosos, como se perdesse parte de si, depois olhou a sua própria mão que a segurava, onde uma aliança como amarra, tinha o mesmo brilho.

22 julho, 2011

Tela mágica


No seu planeta distante, via-o passar, na tela mágica, na sua camioneta velha.
O braço de fora da janela, bronzeado e musculado deliciavam os seus olhos que vagueavam fantasias. Depois o olhar descontraído, parecia que assobiava uma qualquer música enquanto conduzia. A sua vida era aquela estrada, a camioneta velha onde encontrava abrigo. Ela dele não sabia mais nada, mas estava fascinada com este desconhecido.
Olhava-o com atenção e, por vezes, quase jurava que ele também a via, esboçava um sorriso rasgado e parece que lia nos seus lábios formar-se a frase "Bom dia minha doce companheira".
Logo sorria, mesmo sabendo que ele não a estava a ver, sorria de alegria, do aconchego que estas palavras lhe davam, enfeitiçavam o resto do seu dia. Então contava-lhe as suas histórias, o que pensava, sonhava e sentia. Esbracejava, ria, derramava lágrimas. Sussurrava-lhe docemente, como se fosse a estação de radio que ele ouvia.
Recostava-se depois na sua casa de chão, questionando se algum dia os seus mundos se poderão cruzar. Se ele conseguiria entrar no seu espaço e partilhar aquele pedaço de relva macia onde ela dormia, abraçar o seu vento que roçava nas árvores sem perigo, sem pressas, sem horas. Abraça-la a ela, em sintonia. Compreende-la, aceitar o seu planeta distante, uma alienígena esverdeada, um mutante... Será que ele a queria?

Por enquanto ele era apenas uma tela mágica, com um sorriso. A frase doce pela manhã que a acarinhava, um delicioso desconhecido.

21 julho, 2011

Arrancar-te



- Sinto que é a última vez…
Ele afagava-lhe o cabelo desarrumado no seu peito e levantava-lhe o queixo. Os olhos enormes cor de avelã revelavam o que nem precisava de dizer:
- Eu também sinto o mesmo. É a ultima vez que te vejo.
- Vou sentir tanto a tua falta – dizia-lhe de olhos embaciados, roçando os lábios molhados no dele – de falar contigo de manhã e ouvir a tua voz estremunhada ao acordar.
- Vou sentir saudades de te abraçar, do teu sorriso, ouvir-te falar sem parar.
- E as nossas gargalhadas? Tu fazes-me rir... Quem é que  vai rir comigo agora?
- Ninguém – dizia-lhe na sua voz melada, agarrando-lhe o rosto, com ambas as mãos,como se de um tesouro se tratasse – Ninguém se pode substituir, e eu nunca te vou deixar.

Abraçaram-se por um tempo indefinido, num aperto tão forte, como se nele fosse possível unir os dois corpos, colá-los de alguma forma, cozer a pele uma à outra . Tornarem-se num só, indivisível, inseparável.
Mas serão sempre  dois corpos, rasgados pelo tempo, pela espera, por escolhas dolorosamente separados. Depois, as suas almas, atiradas para um poço fundo onde ficam encarceradas, emergem, lutando entre a morte e a vida, gritando desesperadas.
A vida agride-os, esfaqueia num golpe hábil profundo, esventrando lentamente, brincando às escondidas com a realidade.
  
- Há tanto de ti em mim, não consigo arrancar-te – repetia, enquanto conduzia, a velocidade excessiva, na direcção contrária.


20 julho, 2011

O Amor anda à deriva





«O Amor anda à deriva pelos canais da Bella Città!» 
Recebi hoje numa daquelas propostas de descontos online que estão agora na moda. 
Voltei a ler incrédula:

«O Amor anda à deriva pelos canais da Bella Città!» ... 
Não consegui sentir pena dele, confesso. Afinal, poderia andar à deriva por tantos outros locais mais... banais. Diria mesmo que abandonado num lago lamacento à beira de um banco tosco de jardim, na espuma acastanhada da rebentação das ondas numa praia deserta, num qualquer riacho que percorre uma montanha esquecida... Mas não, ele, refiro-me ao Amor, anda à deriva por locais mais fashion, cheios de glamour. Mais concretamente anda a deambular pelos canais de Veneza. Acredito que se desloca de Gôndola e deve ouvir a melodia dos violinos soprar-lhe aos ouvidos enquanto distribui paixão, pelas suas musas, em divinas serenatas. 

Abri a "proposta", frustrada, achando indecente fazerem inveja a uma comum mortal como eu, para logo a seguir me deparar com a frase: 
«Dê-lhe a mão 
Eu dou, eu dou! Gritei logo para o ecrã. Dou a mão, o braço, as pernas, os pés... É só ele querer levar-me para lá! 
E ainda continuou com a provocação: 
«O Amor anda à solta pelos canais de Veneza. Reacenda paixões e reencontre sentimentos esquecidos

Pois bem, Amor, eu estou aqui de braços abertos pronta para te salvar, sou boa nadadora se a Gôndola se virar e, estejam os sentimentos esquecidos ou não, eu reacendo as paixões que quiseres ao teu lado nessa Bella Cittá. Como diria o outro ... Choose ME! 

(E pronto, isto foi um desabafo sobre as provocações que se recebe por e-mail nos dias que correm...)

19 julho, 2011

Dias vazios


Há dias em que vagueio perdida numa espécie de sonambulismo. Como se tirasse férias de mim. Perco-me nas horas, os minutos não existem, nem sei em que dia estou. Perco-me nas conversas que me rodeiam, como ecos que circulam no ar, numa qualquer língua estrangeira.
Perco-me da gente, vultos que passam por mim em corredores escuros, chamam o meu nome e perseguem o meu andar. Caminho a direito por ruas tortas, choco com paredes, tropeço na calçada, arrasto o corpo pesado e dormente sem destino, nem sequer penso onde ou quando vou parar.
Há dias vazios, desprovidos de vontade, esburacados. Dias cansados, esgotados. Que apetece enfiar numa garrafa e atirar ao mar. Desfazer-me deles, de qualquer jeito. Esquece-los, apaga-los. Rebobinar.
Viver todos os dias cansa. Por vezes cansa. O sono poupa-nos um pouco, mas é curto. Espera-nos sempre o acordar. O repicar constante do relógio para mais um dia, e depois outro, e a seguir outro.  Um tique-taque tique-taque infernal. Repetitivo, insistente.
Abro os olhos e suspiro. Sei que há tanto para descobrir lá fora, para sentir e amar. Sim, sei que há tanto de mim nessa manhã que me espera, num simples gesto que me aguarda, na surpresa de um breve olhar.
Mas naquele preciso instante, há o deserto do silêncio, uma estrada imensa que vislumbro cá dentro, sem paixão para a atravessar.

Gelado de Morango


Sabia a gelado de morango, por isso, enquanto o acompanhava pelo corredor, o frio descia-lhe pela garganta e provocava-lhe um arrepio. 
Sim, era porque o olhar dele sabia a gelado que tremia quando a olhava nos olhos de repente e dizia um "bom dia" subtil. Rouco, Envergonhado. O dela embaraçado, ajeitava os óculos e respondia num sussurro inaudível. Corava, da mesma cor do gelado, e ele sorria sem perceber. 
Depois sentava-se à sua frente, paciente, e derretiam fascinados os seus olhos azuis marinho, de sabor indefinido.   
- O que temos para hoje Sofia? - perguntava abrindo a agenda por cima da secretária.
- Um almoço com a Dra Rita -  respondia engolindo uma colherada demasiado fria. 
Sabia a gelado de morango, doce, irresistível, mas todos os dias saboreava apenas os pingos que dele escorria.

18 julho, 2011

Beijam-se



Os olhos encontram-se numa praia qualquer junto a um rochedo.
Beijam-se num choque violento, invulgar, que transpõe a retina. A visão fica turva e tudo à volta desaparece numa espécie de tontura. Perde-se a direcção. Por magnetismo os corpos aproximam-se lentamente, num galopar interior impaciente. A pulsação acelera e os rostos debatem-se de dúvidas e hesitação. Frente a frente, os lábios, a milímetros, anseiam tocar-se. Anseiam mas resistem. Trai-os a respiração quente que os invade como uma brisa de desejo. A milímetros, a respiração dele desliza, percorre-lhe o pescoço, os lábios roçam ao de leve como veludo. «Um golpe baixo» ela rende-se envenenada. Os lábios escorregam quentes, húmidos. Também húmida é a areia da praia onde os corpos se entregaram desamparados sem notar. Ardem, descontrolados, flamejam junto ao mar.
A respiração sobe devagar, lambe-lhe o pescoço impunemente. Sente-lhe o peito firme, apertando de encontro ao seu. Estremece e o coração salta-lhe desenfreado. Os lábios dele continuam a percorre-la rente ao queixo, contornam-o subtilmente. A milímetros respiram hesitação, mas estão já embriagados da sede de se violarem mutuamente. Primeiro raspam-se, roçam para sentirem os contornos, o volume, a forma. Ela desenha-lhe a boca com a ponta da língua, trinca-lhe ao de leve o lábio e depois saboreia-o. Invade-lhe a boca sem permissão.
Beijam-se as línguas, sedentas, numa dança ritmada. Mistura-se a saliva, os odores das peles.
Beijam-se as mãos pelos corpos inebriados de prazer. Ondulam numa melodia mágica de sons e sabores. Beijam-se os braços, o peito, as costas, as pernas. A areia mistura-se, entranha-se na transpiração. Beijam-se intensamente, numa entrega carnal, como se não houvesse mais nada, mais ninguém. Beijam-se sofregamente, na violência do tempo que urge, finito, como se não houvesse amanhã.

15 julho, 2011

Boleia de um fantasma


Ali parada, no meio da estrada deserta, pede boleia a um fantasma que passa.
Agita as mãos no ar, faminta de um abraço apertado, de um beijo molhado que lhe percorra o pescoço e preencha a alma.. Sente-se abandonada, perdida.
Agita as mãos para que ele a veja bem, ele conhece-lhe os olhos, a boca, o cheiro, o contorno do corpo.
Ela não o vê, sabe que ele não tem rosto, mas presente-o através do vento que lhe ondula o cabelo. Ele passa de mansinho quase sem ela notar. Parece que ouve a sua voz grave sussurrar-lhe palavras doces ao ouvido. Alimenta-se delas e acalma-se aos poucos, descansa os braços, erguidos no ar.
Espera. Espera porque sabe que ele vai novamente passar. Às vezes pensa ouvir ao longe uma melodia estranha de um berimbau, outras um batuque ritmado de djembés, sons dele, galopam a alma que vagueia confusa num deserto imenso de incompreensão.
Ele passa, sem hora marcada, e leva a sua alma.
Deixa o corpo extasiado na berma da estrada, deixa o rosto ausente de expressão.

13 julho, 2011

Rota

Há 11 anos que faço o mesmo percurso, apanho o comboio e troco nas mesmas estações de metro. Ainda assim, em modo de piloto automático, não há uma semana em que não me engane numa qualquer estação de metro. Quando dou conta, estou 2 ou 3 estações à frente. Não porque adormeço, pelo menos, não na maioria das vezes! Mas porque insisto em aproveitar aqueles 45 minutos de trajecto de vida para mim, para ler, beber agua, escrever, ouvir musica, e sim, tudo em simultâneo. Na maioria das vezes consigo fazer estas coisas com sucesso… outras, confesso, o aparato que instalo nas minhas saídas abruptas das carruagens são episódios embaraçosos dos quais saio a pensar “Deus queira que não me vejam mais”. É o livro que cai, a água que se entorna, o lápis que rebola para debaixo do banco, o fio dos phones que fica preso na mala da senhora do lado…

Por mais rotas que existam, por mais vezes que a percorra robotizada, por um ou outro motivo, há alturas em que sinto uma necessidade visceral de fugir da rota habitual. Assim, meio inconsciente, de rompante, mesmo que perdida, sem saber se deslumbrada com a novidade da paisagem, se assustada com o desconhecido.

Sair da rota torna-se tão necessário como respirar…
Quebrar um zumbido que sufoca, arriscar um caminho em contra mão, entrar num cruzamento sem hesitar. Perder-me. Andar à deriva por um tempo. Abandonar-me. Esta é talvez a melhor forma de fugir de uma rota em colisão.

12 julho, 2011

Tempo


O corpo balançava ao som do vento, numa brisa suave matinal. Também os cabelos esvoaçavam, ainda húmidos, colados ao rosto. Ao seu lado um corpo delgado, hirto, olhava o vazio. Os olhares não se cruzaram depois do quente da noite, nem os braços, ou os corpos se abraçaram depois de se vestirem. Nada. Um ar gélido cercava-os, entre os dois uma distância de centímetros intermináveis, separados por uma barreira invisível.
Ele pediu-lhe tempo.
«Quanto?» perguntou.
Ele abanava a cabeça confuso. Não sabia. Não usava relógio, não se recordava sequer em que mês estava, nem do dia. Apenas «Tempo» disse numa voz rouca, cravada de intimidade e agonia.
«Quanto?» voltou a perguntar-lhe sem mover o rosto, pálido, de lábios secos pelo frio. Os olhos ficaram baços. Os dele, ela não sabia. Apenas sentiu o corpo delgado a afastar-se, talvez empurrado pelo vento, pensou por momentos, ou talvez por cobardia.
A voz rouca sumia ao longe «2.000 km de tempo» respondia-lhe.

10 julho, 2011

Conversar


Perdeu-se no meio de uma conversa trivial durante um almoço. As frases começaram a escapar-lhe, primeiro os verbos, depois os adjectivos, aos poucos deixaram de fazer sentido. Seria sobre o trabalho? Ou os saldos das lojas? Ou como a temperatura oscilava indefinida? Perdeu-se e já não se encontrava ali. Os pensamentos voavam-lhe para longe, apenas o corpo permanecia no ritual habitual.
“Pssstt…” - Um rapaz de cabelo despenteado e óculos rectangulares de massa, de onde sobressaiam uns olhos azuis, chamava-na da mesa ao lado. Estava sozinho e pousava ao lado dele um caderno de capa preta, olhava-a como se a conhecesse de algum lugar. Ela reagiu com a estranheza do desconhecido e, ao mesmo tempo, o desejo incontrolável de lhe responder. Perguntou-lhe com o olhar, acompanhado com um ligeiro gesto em direcção ao seu peito soletrando com os lábios “Conheces-me?”. Na mesa ao lado, ele abanou a cabeça enquanto mexia o café, respondendo com a mesma mudez “Isso importa?”. 
Nesse momento ela sentiu-se ainda mais intrigada, a conversa na sua mesa eram palavras soltas que já não ouvia, nem lhe interessavam. Queria ouvir as palavras provenientes da boca daquele estranho que a invadia em silêncio, como se a conhecesse, sentia-se ávida conversar com ele, sem perceber porquê aquela mímica seduziu-a. Fugiu com os olhos por segundos que lhe pareceram eternos até lhe devolver novamente um olhar de esguelha. Só mais um olhar, pensou, que mal tem?
Ele continuava a olha-la sorrindo e os seus lábios moviam-se onde ela lia “queres conversar?”.
“Conversar”, pensou. Ele queria conversar com ela, era a história mais absurda de engate que ela se lembrava. Ainda assim, de sorriso trocista, devolveu-lhe silenciosamente “Sobre o quê?”. Ele respondeu da mesma forma, bem devagar para que ela acompanhasse o que os seus lábios proferiam “sobre sensações, o que sentimos”.
Um estranho numa mesa ao lado, perturbava-lhe a atenção. Deu conta que, de repente, conversava mais com ele do com as amigas na sua mesa, alheias a toda a confusão. Reparou que ansiava conversar com ele sem sequer saber o seu nome, ter ouvido a sua voz. No limite poderiam continuar a trocar diálogos mudos, num código gestual que apenas ambos compreendiam.
Levantou-se determinada, deixou a sua mesa com a desculpa “vou ter com um amigo” e sentou-se na mesa ao lado, à frente dele. No mesmo silêncio, ele estendeu-lhe o livro de capa preta abrindo numa determinada página. Um contorno de um rosto, parecia o seu, mas com os olhos raiados, demasiado raiados, como se estilhaçados em vários pedaços de vidro. Perguntou-lhe, ainda numa voz sumida “São os meus olhos? Porque estão assim?”. A voz dele saiu num volume normal, fazendo-a sentir-se ridícula com o seu sussurro. Uma voz estranhamente agradável, até mesmo familiar “Diz-me tu, porque os teus olhos espelham estilhaços de insatisfação”.
E foi então que começaram a conversar. As palavras jorraram sobre o que cada um sentia da vida, as angústias e incertezas, os medos, as dúvidas.
Não sabe por quanto tempo ficaram ali a conversar, até que a tarde fez-se noite e despediram-se.
Lembrou-se depois que não ficou com o seu contacto, não sabia sequer o seu nome, nem o que fazia. Talvez nunca mais o visse. Ainda assim, conversar com ele foi o melhor do seu dia.

08 julho, 2011

Distância


"E agora?"- pergunta-se - "O que há depois da distância?"
Um muro enorme de cimento baço, imponente.
Um vazio sombrio, um precipício assustador.
Uma escuridão imensa de inexistência, ilusões encaixotadas em prateleiras de uma cave bafienta.
Depois da distância há a necessidade de apagar memórias que carregam proximidade.
Depois da distância? Resta a distância da distância, numa promessa assumida de desamor.

05 julho, 2011

Esquina qualquer


Embateram numa esquina qualquer, numa noite de chuva fria.
Estilhaçaram-se mutuamente nesse dia, num choque abrupto, frontal. 
Primeiro com a força do corpo, depois a violência do olhar. Confusos, respiraram rente à boca. Ofegantes. Atraídos por instantes num apetite voraz.
Baixam-se, para apanhar as folhas que ela deixou cair no chão. E deixaram-se cair também, descontrolados, nos braços um do outro. Primeiro, no piso empedrado da calçada, depois contra a parede suja e gelada. Por um tempo que o relógio não sabe controlar. Indeterminado, carnal.
Ela mordeu os lábios sequiosos. Sôfrego, ele raspou os seus, pelo pescoço dela. E os olhos voltaram a cruzar-se. Fixaram-se, demoradamente. Enfeitiçados. Os braços serpentearam enredados, as mãos despiram prazer. Ali mesmo, extasiados, numa esquina qualquer, amaram-se sem se conhecer.
As bocas mudas, entregaram-se esfomeadas. Uma da outra, em busca de alimento. Desejaram-se despojadas de palavras. Apenas o contacto quente, o tronco dele molhado, contra o peito dela acelerado. Estranhos de um passado inexistente. Quem foram não interessava para nada, o futuro era-lhes indiferente. Entregaram-se impunemente. Não sabem quanto tempo depois largaram os corpos suados, viciados numa fome incerta.
Dobraram a esquina e separados.
A noite era fria. A rua estava deserta.

04 julho, 2011

Coragem


Assim é a vida, um oceano  imenso onde podemos navegar, mas também afundar.
Reside em nós a capacidade de agir. A vontade, a resistência, a coragem. Sim, acho que é isso - coragem- ou ficaremos para sempre numa pequena ilha deserta, isolados em alto mar.
Para ir mais longe, alcançar um sonho, ser feliz,... para tudo é preciso lançar-se ao mar com coragem. Sem amarras ou âncoras. Largar o colete salva-vidas, tirar os olhos das margens e remar em frente. Bracejar, se cairmos à água, sem perder o fôlego.
A costa vai ficando minúscula ao nossos olhos, perdidos naquele azul imenso. Não se distingue o céu do mar. Não há linha do horizonte, não há terra. Há um medo que apodera-se de nós, indefesos, gelados «era tão mais fácil voltar para trás, percorrer o mesmo caminho... » ainda ousamos pensar.
O sonho ganha, neste preciso momento, viril, empurrado de coragem. A ânsia de alcançar move-nos, sedentos de aventura, sem medo deste oceano fascinante onde mergulhámos sem hesitar.

É preciso ter coragem para arriscar ir em frente e não olhar para trás, e fôlego em cada desilusão para não desistir.

01 julho, 2011

Fresta



Numa sexta-feira de Janeiro, Sofia procurou um álbum antigo de Cat Stevens. Colocou “Wild World” a tocar baixinho, como um calmante, acompanhado de chá de tília. Preparava-se para ler espreguiçada no seu velho sofá de veludo castanho, junto à lareira, quando a campainha estridente irrompeu do escuro do corredor. Pensou que fosse Rita, como era seu hábito esquecer-se das chaves de casa. Levantou-se, a arrastar o corpo e a resmungar sozinha, abrindo a porta de rompante sem perguntar.
Do outro lado, um vulto alto abalroou inesperadamente a porta, como se lhe fosse saquear a alma. Por instinto, tentou fechá-la de imediato, assustada. Debateu-se contra o pé dele que a impedia de fechar o trinco, empurrando-a com o seu corpo.
- Olá! – Soprou por entre a nesga da porta - Só vim dizer “Olá”
Renitente, Sofia cedeu abrir a porta devagar. Levantava o sobrolho, mordia os lábios trémulos e abanava a cabeça confusa. Engolia em seco, e os seus olhos azuis, outrora transparentes, estavam agora embaciados em lágrimas que emergiam descontroladas.
- Olá? ... Olá? – Pestanejava repetidamente lutando por travar as lágrimas mais teimosas.
- Olá… - Gaguejou olhando-a de cima a baixo deslumbrado - Sim, acho que as conversas começam assim – E avançou na sua direcção inclinando-se para a beijar na cara. 
Sofia afastou-o com as mãos bruscamente.
- Nem tentes dar-me um beijo na cara… - Gritou voltando-lhe as costas – nem sequer penses nisso, ouviste? Um beijo na cara? …- Caminhava irritada em direcção à porta.
Pedro agarrou-se desamparado ao corrimão de pedra fria, quase caindo pelas escadas. Logo que conseguiu equilibrar-se, puxou-lhe o braço obrigando-a a voltar-se para trás.
- Espera! Nada de beijos. Tudo bem… – Um sorriso rasgava-se nos seus lábios, esforçados por manter um ar sério - Só “olá”, está bem assim?
(...)
Há instantes em que o tempo pára como por magia, como se abrisse uma fresta onde espreitamos e, admirados, vemos o que até então era invisível. Eles sentiram estar a olhar pela mesma fresta de tempo. E num monólogo interior questionavam-se se deviam parar.
(...)
Pisar a linha ténue, quase invisível, entre voltar atrás e começar de novo. E é nessa linha que pode estar o ponto crítico da vida. Recomeçar não significa voltar atrás. E por vezes voltar atrás não significa que se comece de novo, há uma probabilidade imensa de repetir os mesmos erros, as mesmas tentações. 

de uma espécie de conto meu "Fresta no Tempo"