31 agosto, 2011

30 agosto, 2011

Gostava



Gostava de encontrar-te uma noite à beira mar
Espreguiçar-me naquela onda gigante,
A que não chegou a rebentar.
Dançar descalça na areia molhada
Puxar o teu corpo contra o meu
Enfeitiçar-te no silêncio do olhar.
Gostava de sentir-te em mim por um instante,
Ainda que breve, tocar-te.
Cobrir-te de beijos lambuzados
Errar-te, viciar-te
Em palavras descabidas, meladas de manga,
Envoltas de fantasia, onde o sonho revela-se escasso.
Gostava de ser tua, sem paredes ou telhados
Axiomas que estrangulem desejos culpados,
Forasteiros, vagabundos de realidade
Rir-me sem pudor quando dizes
«O amor vai para além de dois corpos»
E falas sobre a fusão das almas.
Eu não compreendo a calma..
Gostava de abalroar o compasso das horas
Impacientes, miseráveis,
Encharcadas de memórias inventadas
Os ponteiros giram velozes, apressados
Porque todos os encontros são rápidos,
Quando a partida tem hora marcada?

26 agosto, 2011

Desistir


«Canção de Amor
Como hei-de segurar a minha alma
para que não toque na tua? Como hei-de
elevá-la acima de ti, até outras coisas?
Ah, como gostaria de levá-la
até um sítio perdido na escuridão
até um lugar estranho e silencioso
que não se agita, quando o teu coração treme.
Pois o que nos toca, a ti e a mim,
isso nos une, como um arco de violino
que de duas cordas solta uma só nota.
A que instrumento estamos atados?
E que violinista nos tem em suas mãos?
Oh, doce canção.» Rilke


Desistir é das palavras mais tristes do dicionário.
Há nela vincada uma impotência que fere, angustia. Que mata e me desfaz.
Desistir. Largar silenciosamente o que me prende, mas não satisfaz.
Para ficar de bem comigo, compreender-me.
Ainda que me queime o sangue nas veias, que me abafe a respiração.
Ainda que a perda seja um precipício gigante e a queda uma dor que rasga o corpo de tristeza, de solidão.
Mesmo quando as almas se fundem, como se de uma só se tratasse, as conversas amam-se viciadas numa espécie de eternidade. A realidade acorda-nos, sacode-nos o dia-a-dia, é ele o abismo que nos separa.
Questiono, talvez num acto de egoísmo, a que estamos afinal agarrados?
Como uma marioneta sem fio caímos soltos, desarticulados.
Uma escuridão, desalento. Não tenho certezas, não entendo mais nada. De tanto que nos atropelou o tempo, de tanto que desbravámos passados. Estamos tão juntos e irremediavelmente separados.
Diz-me então, como podemos subir mais alto? O que nos espera quando lá chegarmos?
Um mundo imaginado em labirintos de aço. Duas almas dispersas, perdidas no espaço.
Parto, sigo em frente, quando o que tenho não me satisfaz.
Num sopro de despedida, não sorrio. Pelo contrário.
Desistir é, sem dúvida, das palavras mais tristes do dicionário.

25 agosto, 2011

Beijo roubado



Adoro beijos roubados
sem intuito ou explicação
Loucos, desvairados
impulsivos, embriagados
corrosivos de atracção.
Um ardor que invade e queima
num tremor que se propaga
arde o corpo em desejo
despido, sedento
de um beijo que se deflagra.
Irrompe, sedando os sentidos,
molhado, doce, afrutado
os lábios macios, a língua morna
um beijo roubado, agora rendido
percorre a pele deslumbrado.

24 agosto, 2011

Pensar


Eu não costumo pensar nas coisas. Só quando elas deixam de fazer sentido.
E é um acto tão natural como ver o sol nascer de manhã e não pensar mais nisso. O sol nasce de manhã e essa é a ordem natural das coisas.
Pensar nas coisas é por em causa todo o significado que elas têm para nós.

Sempre que senti necessidade de pensar nas coisas, essa vontade foi aniquilada pelo desejo voraz de prazer momentâneo.
Pensar é incómodo, penoso.
Sou dominada pelo impulso, pela emoção do instante à miragem do prazer, da satisfação. Rasgo-me por dentro, odeio-me, desprezo-me, quando me traio ao disfarçar-me de racional, como se agisse com segundas intenções.
A reflexão e a análise são coisas que me agridem.
O juízo é algo a que não me permito.
Ser imparcial é uma pretensão que não tenho.

Cada um encerra em si próprio a responsabilidade de ser feliz e a possibilidade de participar na felicidade do outro. Como um exercício da sua vontade e não como um fardo que tem de carregar. A traição do outro provoca uma dor estupidamente superficial ao comparar com a da nossa própria traição. Uma negação de ser feliz.

Sou sedenta de prazer e nada é mais doloroso do que deixa-lo escorrer por entre os dedos. Instintivamente, o desejo incontrolável sobrepõe-se a qualquer teoria, chutando a razão para um canto sem qualquer arrependimento. Pensar é deixar de sentir.

(ando a vasculhar caderninhos antigos numa espécie de obrigação resignada... este texto é de 1995)

23 agosto, 2011

Consciência



Há dias abandonados. Povoados de sofrimento e inquietação. Sombrios.
Um fantasma, uma casa assombrada. Onde as paredes estremecem. O chão de madeira gasta range, as luzes apagam-se fúnebres no velório da solidão. Até as chamas das velas se encolhem ante o peito que arde violento, derrama uma lava de vulcão.
O espectro moribundo, habita a gaveta da memória, desarruma confortavelmente a razão.
Atrevo-me a dar-lhe um rosto, um corpo e até um nome. Resquícios do tempo que passou por mim apressado, trilhos distanciados em quilómetros de desilusão.
Reconheço, numa espécie de calma, que sou eu, o fantasma.
São dias abandonados na insuportável realidade.
Acordo com a estranheza de que quase não vivi.

22 agosto, 2011

Silêncio



“Não sei se do silêncio se chega mais depressa à beleza - Sinto que sim. Mas acho que não chega estar vivo para se ser feliz (precisamos de ser imaginados com encantamento por alguém).
Não precisa de ser um arquitecto, excêntrico ou visionário. (…). Mas alguém que nos permita meditar, que nos aconchegue ao mundo, discretamente, que – entre o burburinho dos gestos – nos escute mesmo sem falarmos e, de surpresa se transforme na nossa lagoa do silêncio.”
Lagoa do silêncio in 'Chega-te a Mim... e deixa-te estar' de Eduardo Sá

19 agosto, 2011

Precisava de amar-te


Em toda a minha vida precisei de amar-te.
Como se não existisse mais ninguém, nem mais nada. Tu, apenas um tu, para abrigares o meu corpo frágil no teu, enredares-me nos teus braços. Foi sempre ali que eu quis ficar. Mas foram sempre instantes de tempo, fugazes, com hora de partir, sem saber quando voltar.
Precisei de amar-te como de respirar. Por isso conservei-te naquele limbo de memórias turvas que lutamos por agarrar.
Arrastaram-se os dias, voaram os anos, um tempo que passou por mim lento, tão lento sem ti. Mas continuei a amar-te. Com uma cegueira voluntária, num derrame interior, no marejar de lágrimas disfarçadas. Sabia que era mesmo assim, amava-te para sentir-me feliz. Precisava de amar-te, ter-te dentro de mim. Para continuar.
Ainda que tenha sido uma batalha perdida, uma ferida por fechar, um impossível, continuei a amar-te. Desmesuradamente, numa loucura voraz. Como um desejo perpétuo que nos queima e nunca se satisfaz.
E, ainda hoje, sei que continuo a amar-te. Com a tontura, a agitação e a entrega de sempre. Como um alimento para sentir-me viva, a chama que arde por dentro.
Mesmo que o corpo não seja o teu, amo-te sofregamente todos os dias. Persegue-me o teu olhar meigo, o sorriso dos teus lábios, deslumbro-me no cheiro da tua pele, entrego-me no deslizar das tuas mãos, desfaço-me com a tua voz aveludada.
Toda a minha vida precisei de amar-te, para amar. É uma âncora pesada demais, não a consigo levantar.

18 agosto, 2011

Por trás do Vidro


É ali, por trás do vidro, que me encontro contigo.
Num magnetismo que atordoa e assusta. Esfaimada de um abraço, um beijo, um sorriso.
Embato no vidro, desolada. Sinto a violência da impotência: quero tocar-te, mas não consigo.
Respiro rente ao vidro embaciado. E beijo-te. Demoradamente.
Há uma certa intemporalidade na barreira do vidro. Despojada de horas, de regras ou limites. Por isso perco-me nesse beijo etéreo. E sinto os teus lábios molhados tocarem nos meus.
As mãos tacteiam, por entre o vidro espesso onde os corpos suados roçam numa espécie de dança invulgar. Tua e minha. Erótica. Viciante. Não sei se és verdade ou fantasia, mas sinto-te em mim de uma forma precisa. Ali, por trás do vidro, onde me encontro contigo. Onde entrego o que há mais íntimo em mim.


13 agosto, 2011

Morri de ti



Hoje percebi que não existirá «amanhã» para nós dois.
Não vai sequer existir «o depois».
O «um dia». Proclamado em delírio, pura fantasia.
Recebi a notícia, numa nudez desamparada, a notícia que nos separa. Era tudo uma questão de tempo. Um tempo que deixou de existir.
Fica o silêncio mórbido, um túnel interminável escuro.
Tu e eu, dois caminhos distintos, paralelos, longínquos,
Carris enferrujados onde perdia o olhar, na esperança vã de te reaver.
Na ilusão de te encontrar.
A ti, a mim, um «nós» vagabundo, abandonado pelo tempo,
Despojado de um espaço que não teve lugar.
Perdi-te «Para sempre».
Oiço num murmúrio que me sacode o corpo com violência.
Corta-me a respiração.
E, como se me trespassassem com uma espada,
A sangrar, caída na berma da estrada,
Aceito que não haverá mais nada,
Não existirá o «depois» para nós dois.
Num vazio enevoado, uma espécie de tontura.
As mãos tremem, a voz soluça e os olhos transbordam
Lágrimas de pânico e tortura.
Há um grito sufocado que me aperta, estrangula por dentro:
«Hoje morri de ti» solta-se de repente.
Nunca pensei que doesse tanto perder, para sempre, o que nunca tive ou vivi.




11 agosto, 2011

Ensaio sobre a Alma




Cada segundo em que estou acordada, em qualquer momento do meu estado consciente, procuro por ela.
Não é propriamente algo que se pode esconder numa gaveta fechada, por baixo de um colchão antigo ou em alguma caixa velha arrumada no fundo de um armário.

Na verdade ela é imprevisível, incorrigível e vadia. Esgueira-se por uma nesga da porta ou pela fresta da janela e corre rápido, mais do que os pés humanos possam correr para a alcançar.
Podia procura-la nas montanhas mais altas, nas florestas mais densas, nos lugares mais perigosos e longínquos, que não a iria encontrar. Porque a sua natureza é rebelde, fugidia e não se deixa capturar. Nem por mim, o seu próprio corpo, que lhe deu origem e a fez crescer, também aquele que a perdeu ou letargicamente a deixou partir.

Exausta de uma busca inglória, do vazio constante por preencher dentro de mim, não tive alternativa senão lançar-me na boca do lobo para a reaver.

Chamavam-lhe “Coleccionador de Almas” e reza a lenda que já conquistou as Almas das mais belas criaturas humanas e até divinas. Diz-se que algumas das Almas por ele conquistadas ficaram para sempre com ele, outras ele entregou-as ao seu destino.
Quando o vi naquela noite achei-o estranhamente familiar. Apesar de já ter ouvido falar dele, não lhe conhecia o rosto. E ainda não o conheço na totalidade, pois ele esconde-o por detrás de uma máscara que lhe tapa os olhos e o nariz, deixando apenas a boca a descoberto. Uns lábios grossos, carnudos, mas pouco expressivos. “Talvez seja para proteger a sua própria alma, assim como escudo” pensei enquanto me aproximava devagarinho. Um espanta-espíritos abanava ao ritmo do vento que entrava por uma pequena janela, o aroma de incenso queimado inundava aquele cubículo escuro iluminado por velas. Ele estava sentado no chão e olhava na minha direcção, um olhar que eu não via, apenas sentia.
- Roubaram-te a Alma – disse numa voz grave e calma.
Limitei-me a acenar e, pela primeira vez, escancarei-me com uma hipótese plausível para ela não regressar. Talvez assim como havia um Coleccionador de Almas, houvesse também um Ladrão de Almas, um Traficante de Almas, e por aí em diante. Um mundo horrendo de criminalidade por desvendar.
De repente um frio desconfortável percorreu-me o corpo “e se a minha Alma tivesse sido vendida? Oferecida a alguém que a espavoneie como sua, sim, se ela agora pertencesse a outra pessoa?”. Seria possível alguém, para além do Coleccionador de Almas, um feiticeiro louco, ter mais do que uma alma? E o que faria com ela então? Estaria a minha aprisionada, doente, despedaçada? O sofrimento assombrava o meu rosto quando ele interrompeu os meus pensamentos.
- Mas ela está feliz, mesmo que apartada do seu corpo.
Feliz. Agora ele referia aquela palavrinha fantástica, que supostamente diz tudo e, na boa verdade, não diz nada.
- Feliz como? – Perguntei já irritada, imaginando um corpo aos pulos de alegria com a minha Alma ao colo, a correr com ela pela praia, sentados num pontão a pescar…
- Feliz, quero dizer, completa – esclareceu – E agora só tem duas hipóteses: ou a deixa viver feliz como está mas longe do seu corpo, ou eu posso capturá-la e traze-la de volta para a aprisionar ao seu corpo, aquele que lhe deu origem.
- Mas isso é uma escolha? – Semicerrava agora os olhos incrédula – Ficar com o meu corpo vazio de Alma ou ter a minha Alma aprisionada e infeliz.
- Garantidamente não é uma escolha fácil, mas as grandes escolhas são sempre assim…Difíceis – tamborilava agora os dedos no chão de madeira – Com a primeira hipótese dá-lhe a liberdade de ser feliz e poderá sempre voltar se essa felicidade acabar.

Arrastei o meu corpo vazio, ainda mais vazio agora esburacado por uma súbita tristeza, para fora do cubículo escuro. A noite, de repente, pareceu-me mais clara do que o normal, ou seriam as estrelas mais brilhantes, ou a lua cheia lá no alto. Tudo era definitivamente mais claro cá fora.

Respirei fundo, como para aceitar conscientemente a decisão tomada.
Acreditava que qualquer Alma devia ser livre, ainda que para isso implicasse distanciar-se do seu próprio corpo. De alguma forma fazia sentido a busca pela tão proclamada felicidade, e se ela estava noutro lugar, que assim fosse. Estaria ela a dormir espreguiçada no ombro quente de alguém que a amasse? Consolada na sua respiração, abrigada rente ao seu sorriso? A ideia agradava-me, por isso continuei a caminhar confiante, indiferente ao meu corpo abandonado e vazio. 
Sabia agora que, a qualquer hora, ela podia voltar, ou quem sabe, até mesmo outra Alma podia conquistar o meu corpo, sem qualquer compromisso.

08 agosto, 2011

Destino

“sometimes the things we can’t change, end up changing us”. The Air I Breath

Vi o filme "The Air I Breath" em 2008 e hoje lembrei-me dele. Ou lembrei-me desta música, não sei. Foi uma das hipóteses. Lembrei-me e não descansei enquanto não encontrei e ouvi a música.
A história do filme é apresentada em forma de mosaico e assenta num antigo provérbio chinês que divide a vida em 4 pilares : Felicidade, Prazer, Tristeza e Amor
É um filme sobre o Destino, onde as emoções colidem e explodem contraditórias em estados de doce-tristeza ou de trágica-felicidade. No destino de cada um pode estar a peça que falta do puzzle do outro. 
Faz-nos questionar se de facto há um destino na nossa vida e qual a força que ele tem em nós, na capacidade da nossa "fúria" quando, por vezes, queremos mudá-lo. 
As músicas que estão a tocar também são do filme, se desligarem o mixpod (eu não consegui desligar o autoplay, pffff...sorry), podem ouvir a música que mais gostei e que me trouxe hoje aqui. Não sei se por destino. Apeteceu-me.

Imaginem


Este é  meu cartão de cidadão, passe social, carta de condução, matrícula do carro.
Não me peçam outro documento.

"Eu gosto do impossível, tenho medo do provável, dou risada do ridículo e choro porque tenho vontade, mas nem sempre tenho motivo.
Tenho um sorriso confiante que as vezes não demonstra o tanto de insegurança por trás dele.
Sou inconstante e talvez imprevisível.
Não gosto de rotina. Eu amo de verdade aqueles para quem eu digo isso, e me irrito de forma inexplicável quando não acreditam nas minhas palavras.
Nem sempre coloco em prática aquilo que eu julgo certo.
São poucas as pessoas para quem eu me explico..." Bob Marley

07 agosto, 2011

Instante descalço


«Não, não preciso de mais nada» dizia-lhe sorrindo «Só preciso de ti »
E era tudo quanto ela queria ouvir da sua boca, como um beijo que dança ao som de uma melodia triste.
Era tudo quanto ela queria acreditar, e por isso sorria. Um sorriso também triste, silencioso, descalço.
Naqueles breves segundos era tudo quanto a prendia à vida. Não queria pensar no depois. Estava ali, mesmo à sua frente, "o" instante mágico, avassalador. De hesitações e contradições, engolidas por uma amálgama de emoções. Era o tudo ou o nada, não se pode morrer para viver outra vez. O chão tremia por baixo dos pés descalços, tremia também o corpo de impotência e ardor. Entregam-se os braços desamparados e as bocas sequiosas debatem-se em areias movediças de desejo e pavor. Queima-a a paixão, por não ter limites ou controlo. Foge-lhe por entre as mãos o coração, também descalço de reacção ou consolo.
Sempre foi tudo o que ela queria e sonhava. Ele, o "instante", mesmo que vadio, descalço de amor.

04 agosto, 2011

Memórias inventadas


«nós andamos constantemente a alterar os factos, a reescrever a história, para tornar as coisas mais fáceis, a fazê-las encaixar na nossa versão preferida dos acontecimentos. Fazemo-lo automaticamente. Inventamos memórias. Sem pensar. Se dissermos para connosco com  frequência suficiente que certa coisa aconteceu, começamos a acreditar nela e então somos de facto capazes de recordar.»
in Antes de Adormecer

E é assim que tenho saudades tuas. De ti. De mim. Dos momento irreais que passámos juntos. Dos beijos molhados, precipitados de loucura, também dos calmos ao fim do dia. Dos abraços apertados contra o peito, do sussurrar no ouvido coisas descabidas. De dançar descalça contigo, ouvir-te tocar um ritmo tranquilo. É assim, nesta memória inventada, que tenho saudades tuas.

03 agosto, 2011

Caminho


- Psssttt onde vais? - perguntou-lhe o vento baixinho.
- Vou onde me levarem os meus pés. Sigo o caminho. O importante é seguir, sem parar.

A vida é essa rota que perseguimos, sem saber muito bem qual o destino. Um lugar no mapa? Uma casa? Uma profissão? Um marido? Filhos? Será isso a que chamamos "caminhos"? Escolhas, decisões, ilusões, desilusões. Sim, acho que isso são as pedras que vamos encontrando pelo caminho, por vezes tropeçando, caindo, para nos levantarmos depois. E continuar em frente, mesmo que lá ao fundo se vislumbre uma curva apertada, mesmo que o nevoeiro nos ofusque a visão e temos de seguir apenas os sentidos, caminhar por pura intuição. Mas seguimos, não paramos. Por vezes andamos mais devagar, arrastamos-nos, empurrados se for preciso, quando o cansaço toma conta do nosso corpo e as pernas tremem exaustas, como se pendessem à beira de um precipício. Chegamos a pensar que vamos desistir, que ficamos por ali na beira da estrada, à espera que alguém nos leve, nos assalte o corpo e alma, pelo seu caminho. Puro engano... São os nossos pés, por isso avançamos, destemidos.
Eu avanço sempre, mesmo que tenha de voltar atrás, recomeçar de novo por outro trilho... vou onde os meus  pés me levarem, por instinto, sigo o meu caminho.

E estou de Fériassss! Para os meus amigos daqui deixo um cheiro das minhas férias no outro lugar onde vou voltar a escrever alguns episódios mais divertidos. Os outros textos, os sonhos, os vôos, ficarão por aqui mesmo, e os que embarcaram comigo aqui serão sempre bem-vindos!

01 agosto, 2011

A verdade da mentira


Sobe ao ramo mais alto da árvore e fica lá, do cimo, a olha-lo.
A distância permite-lhe apenas reconhecer os seus contornos, a forma de balançar o corpo quando caminha, o rasgar dos olhos quando sorri.
Ela sabe que o sorriso não é para ela, já não é para ela, mas ainda assim, do alto da árvore devolve-lhe o sorriso que lhe preenche por instantes a alma e aquece-a do frio que lhe percorre o corpo, desabrigado lá em cima.
Recosta-se e fica a vê-lo, ao longe. Abandona-se a imaginar tudo o que poderia acontecer se ela estivesse lá com ele, do outro lado do mundo.
A imaginação perde-se na sua boca carnuda que, entre risos, diz as coisas mais descabidas «vamos fugir os dois?» parece que ainda o ouve sussurrar, de voz aveludada, ao ouvido.
Os braços compridos acompanham desajeitados o seu corpo, que parece que dança em vez de andar. «És louco, sabias?» repetia-lhe empurrando-o. Ele agarrava-lhe as pernas para a por às costas e acabavam invariavelmente os dois no chão caídos. Despojados como um sem-abrigo.
Levanta um pouco as costas doridas de um ramo mais áspero. Vê-o a entrar na sua casa, acender a luz do quarto e imagina-o a atirar o corpo embriagado para cima da cama. Fica assim, atravessado ao comprido. Aconchega-se a uma ramagem de folhas e imagina-se a acordar a seu lado: a guerra de almofadas, a luta pelo chuveiro, a batalha de espuma no duche, o duelo de pasta de dentes que se transforma em creme de rosto. E ria-se sozinha do alto da sua árvore. Ria-se, para depois chorar baixinho.
Naquele momento já não o conseguia ver, lamentava num vazio imenso, amanhã tentava novamente. Mas tinha a sensação de que ele cada vez estava mais longe. Ou talvez saísse à rua menos vezes. Não sabia. Ainda assim, todos os dias subia ao alto da árvore para o espreitar um pouco, depois respirava fundo quando o via desaparecer, e regressava para o seu mundo. Descia devagar, cada ramo da árvore, como se fosse o caminho mais íngreme. Os ramos já a conheciam, eram bondosos com ela, amparavam-na de qualquer pé em falso, qualquer deslize. Chegavam a abraça-la para que não caísse.
Ainda atordoada, regressava à sua casa. Abanava a cabeça, beliscava os braços, entrava. Não sabia qual era a verdade da mentira.