03 novembro, 2015

Bolha



- Posso andar assim por um tempo?
Sem a pressa da vida empurrar-me o corpo e, num turbilhão, arrasta-lo pelas bermas do passeio. Sem o medo constante de errar, a angústia da escolha, a pressão sufocante de decidir. Sem as dúvidas a rasgarem a pele, as perguntas vãs a queimarem tudo por dentro.
- Posso andar assim?
Sem me notarem. Invisível, transparente.
Até que o anoitecer devolva a sombra da paz, o néctar dormente dos deuses.
- Só por um pouco.
Libertar os passos do calendário do tempo, da voz ritmada dos dias, e permitir-me a uma melodia suave, num embalar íntimo, só meu.
Olho à volta e vejo metade da minha vida, a passar por mim, numa locomotiva a vapor. Um fumo imenso em redor, ofusca a visão de tonturas, ansiedade e medo. É assim a vida num carris apertado de ferro baço, com o percurso delineado, minutos contados para chegar a lugar nenhum. Percebo agora, que não levo nada. Estou sozinha e despida de quem fui, de tudo que tive, e de quem sou.
Não me venham falar do mundo à volta, lá fora. Conheço-o bem demais para saber que agora, neste momento, preciso ficar assim. Na minha bolha. Por um tempo.