27 junho, 2011

Partir




Naquele dia ele tomou o café da manhã, como fazia sempre. Os gestos automatizados, com os olhos pousados na torrada e o pensamento ausente. Já não era ele que estava ali à sua frente. Era apenas um corpo frio, despojado de vida, inexpressivo. Sem sangue a bombear-lhe as veias, sem o perfume de uma noite ardente de prazer. Habitava nele um silêncio profundo, como se tivesse caído num abismo enorme rochoso. Talvez por isso não foi difícil vê-lo partir. 

Os seus olhos cruzaram-se pela última vez à porta. Recorda, como se atravessasse um deserto imenso na sua memória, como antes esses olhos a invadiam insaciáveis, percorriam toda a sua pele, que arrepiada explodia de desejo. Desejo... ironicamente ele desejou, desejou «bom dia», por entre os lábios que asfixiavam uma vontade de partir. Uma vontade incontrolável, transparente e crua. 
«Porque não parte?» pensava enquanto acenava um adeus moribundo. Num ritual triste e fúnebre. «Talvez o último adeus», pensava ao vê-lo afastar-se pela janela.
Naquele dia ele não regressou. Não regressou mais. Sangue que jorrou num vermelho intenso pelo seu corpo inteiro, assim ele retomou a vida.
Ainda assim ela esperou. 
Ficou à espera. Porque tinha saudades daquele olhar antigo e penetrante, que sorria poesia.
Esperou pelas mãos que há muito não a tocavam, desapertando lentamente cada botão da sua camisa, numa respiração frenética e descontrolada. Esperou para saciar a fome de tê-lo de volta, voraz, improvisado. 
Ele já não voltou. «Partiu» convenceu-se. «Desistiu cobardemente». 
Partir sempre foi a forma mais fácil de desamar.

5 comentários:

Diogo disse...

Love it.
Mas tal e qual um comboio que parte, não tarda chega outro para não deixar arrefecer os carris...

Kiss

Unknown disse...

Existem pessoas que preferem fazer da sua vida uma fuga para a frente...

De facto... "partir sempre foi a forma mais fácil de desamar", mas eu detesto coisas fáceis :)

Beijo grande

sgar disse...

Diogo, eu apanho comboios todos os dias Aha! that's the reason XD

sgar disse...

Natacha, eu detesto "partir"... beijinhos!

Unknown disse...

Também eu Sónia! Mas por vezes é a única forma de seguir em frente. Não é melhor ficar a ver alguém partir...

mas enfim... a vida é feita de todas estas coisas, encontros e desencontros...

Beijinhos